No final de 2013, no Convento São Boaventura, Campo Largo – PR, aconteceu o primeiro encontro da Frente de Evangelização da Província (para ler sobre o evento:http://www.franciscanos.org.br), assessorado pelo professor Ciro Marcondes Filho, cientista social, jornalista e professor da USP.
De forma bem humorada e leve, mas igualmente arguta e precisa, colocou para os presentes o verdadeiro desafio da comunicação: o que é comunicar? – para além de publicar no jornal, na internet. Seguem algumas das mais marcantes reflexões do professor Ciro.
Há um sentido extra sociológico de comunicação e que não existe no Brasil. A sociologia no Brasil parece mais voltada aos meios, deixando de lado o como nós, como seres humanos, nos relacionamos com o que vivenciamos diariamente com imagens e informações.
Comunicação é um fato raro e não acontece facilmente, exigindo um empenho da pessoa que comunica e certo conhecimento da pessoa que recebe. Ela é um fenômeno. (o professor tem simpatia pela fenomenologia – participar junto do processo para entendê-lo melhor).
É importante separar comunicação de sinalização e informação
Sinalizar: tudo no mundo sinaliza. Parte-se do princípio de que o universo é povoado de pessoas e coisas que sinalizam; existir é sinalizar, surgir no nosso campo visual. Tudo está buscando uma forma de se fazer mostrar e conhecer. No processo comunicacional somos todos emissores (de forma passiva), que os outros podem ou não se dar conta. Comportar-se é sinalizar: o modo como nos mostramos diante do outro. Todos existindo se comportam. Não dá para não sinalizar. Mas nem tudo que sinaliza nos interessa. O mundo é carregado de sinais externos, sensoriais. Mas não se dá importância a todos, fazendo-se alguma filtragem. Apenas alguns sinais nos importam.
Os sinais que olhamos são os que nos interessam. O interesse separa a sinalização da informação. Quando nos voltamos para algo, aquilo que era mera sinalização torna-se informação. Ela não existe por si mesma: é o sinal que vou atrás, que me chama atenção: um acidente, por exemplo – eu quero saber! Uma biblioteca ou um jornal não têm informação – é necessário o interesse de alguém para que aquele conteúdo torne-se informação. Olhamos por interesse, mas também por que somos atraídos pelo olhar. Às vezes somos fisgados: a publicidade leva a nos voltarmos para certos sinais que, de outro modo, não nos interessaríamos – isso é sedução!
Mas isso não é ainda comunicação. Para comunicar é preciso algo mais que sinalização (passiva ou ativa – atenção) e que informação. A coisa tem que nos fazer pensar, forçar a pensar. Aí a diferença. Quando leio um jornal, busco informações. Não compro qualquer jornal, eu escolho, segundo sua harmonização comigo (a informação não é conflitiva – apenas amplia minha base de dados para tomar decisões). É uma função de reforço. A comunicação pode alterar o que pensava antes, pode transformar. Tem que provocar reposicionamento. Faz com que eu reflita sobre minhas próprias posições.
Uma nova teoria da comunicação para repensar a comunicação
Antes se pensava em passar mensagem: transmissão, transferência de uma mensagem / recepção. É a ideia de pôr algo na cabeça do outro. E funcionou por muito tempo o “modelo canônico”, proposto pelo engenheiro americano Claude Elwood Shannon (1916-2001). Uma fonte que manda uma mensagem por um transmissor chega a um receptor e daí a um destino, quase como um circuito elétrico.
Esse modelo foi questionado pelos próprios americanos, por não servir para humanos. Por que a ideia não é passar algo a outro. Não se sabe o que ocorre na cabeça do outro, como ela é traduzida aí. Essa passagem implica uma transformação: ela é integralmente incorporada pelo outro? Somos seres insondáveis!
Por isso, falar de transmissão supõe que algo é recebido integralmente. O que não se dá realmente. A decodificação é pessoal. A metáfora da transmissão é equivocada por que é física: o objeto é facilmente incorporado pelo outro, ignorando que vivemos em ambientes culturais distintos. A comunicação é fenômeno complexo. O outro recria, por conta própria, o que ouviu (o professor recordou aqui a teoria da autopoiese, dos biólogos chilenos Varela e Maturana).
O mundo externo está longe de ser objetivo e o mesmo vale para cada um dos que podem (mesmo os que não sabem) ler esse texto. O que construímos em nossa cabeça não é necessariamente o que está lá fora. Não há um mundo igual para todos.
Comunicação é uma relação dependente do outro, do clima, do como o outro ouve, do seu humor. A informação é relacional: o que é informação para mim não o é para o outro. Do mesmo modo a comunicação: o que é comunicado a mim não o é ao outro. Ela depende de nossa reação, de um conjunto de forças presentes no espaço durante o processo comunicacional. Nunca se repete da mesma forma. É variável.
Necessitamos do outro. Nossa relação com o mundo necessita do outro. Sem o outro não há comunicação. Fechado em mim, não posso entrar em comunicação. Precisamos do outro para nos transformar. É possível uma transformação em nós. A comunicação nos transforma no sentido de abrirmo-nos ao outro, transformando-nos.
Mas para isso ocorrer:
-- é preciso sair do casulo e abrir-se ao diferente;
-- não passar superficialmente pelas coisas, mas fazer uma imersão, vivenciar as coisas – viver cada momento;
-- não ver o outro como coisa – me relacionar com ele. (se o facebook fosse presencial, todos ficariam chocados, com pedidos inusitados, às vezes, de amizade!).
A cibersociabilidade ou: a máquina e a angústia
O presencial é uma forma mais arcaica de sociabilidade. As pessoas se buscam, e nessa busca acontece a linguagem humana. Existe um estar junto silencioso, que o digital não permite. Há certos momentos que só existem no campo do presencial. Mesmo o silêncio cria uma convivialidade. Pela tela não há o contato, a voz, o olhar. Não se sente a pessoa. A tecnologia exclui o pulsante, o vivo do outro.
Levinas: no campo de concentração resolveu estudar o porquê os alemães conseguiram o extermínio em massa das pessoas. Para o autor, os alemães não viam os executados em seu rosto: eles não tinham rosto, eram massa. O rosto é a expressão mais clara do “não matarás”. Esse rosto (que para Levinas é o acesso ao infinito) permite a passagem à humanidade. Nos campos, as pessoas não eram vistas como seres de rosto. Isso construiu o conceito de comunicação do Ciro. O presencial fala mais que a fotografia e mesmo mais que a expressão da própria pessoa, pois o remete à abertura a essa “rostidade”, que não existe no campo do virtual. Na presença capta-se a alma do outro. Seria essa uma comunicação mais direta ou mera transmissão de informação?
Ainda existem amigos? As redes permitem uma dilatação de pessoas conhecidas, mas talvez inversamente à amizade: os amigos são os que visitam na tela? Aqui, até o conceito de celebridade se transmitiu para as pessoas comuns. E o mais preocupante: passa-se à rede o que deveria ficar no privado.
Conversar é acompanhar as reações do outro, diferente dos diálogos eletrônicos. Em tempo real eu não vejo as pessoas. Os diálogos correm em paralelo: desaparecem os rostos. O outro é a produção de mim mesmo. O outro não passa de um sinal de luz no meu computador. O outro na nossa vida perde sua inteireza e fica algo meio nuançado: a pessoa com quem nos relacionamos virtualmente perde sua densidade como pessoa.
O mesmo na relação com as outras coisas. Não estou na cena, apenas fotografo para o face: a vida deixa de ser vivida na inteireza. Eis o paradoxo da presença: estamos no lugar, sem estar no lugar. Pessoas juntas, com o smartphone conversando com outras. Esse é outro efeito da comunicação eletrônica: reúne pessoas que não estão ali. Antes se falava isso da fotografia: o problema é que as pessoas têm angústia do único: precisam reproduzir o único para sempre (cf. Günther Anders, ex-aluno de heidegger, Husserl e Cassirer, ca. 1953). O homem tem inveja da máquina, melhor que o humano porque dura mais tempo e é mais eficiente. Fotografar é uma angústia humana. Parecida com a angústia da morte: que nos leva a produzir cultura para não encarar o fato que todos vamos morrer.
Os mecanismos de comunicação eletrônica operam com uma compulsão: precisamos ser vistos; se os outros não nos vêm, é sinal de que não existimos (a obrigatoriedade de comentar meu post no face).
Esses aparelhos iludem quanto à possibilidade de comunicação. Eu me isolo: sou uma ilha e o outro é um tamagoushi. O “eu moderno”. Longe dos outros, não conheço e nem quero conhecer ninguém. A distância me faz desconhecer quem é o meu próximo e me permite me fechar entre paredes. O mundo passa a ser cheio de perigos, reais e imaginários. Os outros são inimigos. Não é a toa que se fala que a tecnologia estimula a violência e a xenofobia. Sem contato, posso eliminar o outro: os sites de relacionamento; o esquema das salas de bate-papo com câmera; uma imagem perversa do que pode ser o uso dos meios, para marcar as relações desinteressadas pelo outro.
A tecnologia expôs a miséria de cada um: “adolescente vende a virgindade para comprar iphone 4” (difícil de crer: http://www.gaz.com.br/noticia/285495-adolescente_vende_virgindade_em_troca_de_iphone_4.html). Estraçalha com a privacidade porque há um sistema que facilita essa atuação e resultados. O face não é só alegria: vejam-se os casos de builyng digital. Outra desconcertante realidade: o caso de “morte assistida” pela internet. A morte do outro vira um fato banalizado e tema de interesse. A vida do outro vira algo indiferente.
Além disso, a tirania da rede: o estar sempre conectado, acessível e o necessitarmos atualização permanente.
O que queremos com a comunicação? Como reagir e se posicionar em relação a tudo isso?
Queremos estar a sós? Às vezes, mas também queremos que o outro nos ache. Precisamos do outro e sua presença real. Isso é deixado em segundo plano pelos meios eletrônicos. Não preciso do outro, que posso acessar a qualquer hora pelo meu dispositivo, dando a impressão que isso substitui o outro. Mas é o outro que nos comprova que estamos vivos. Não posso estar seguro que estou vivo se só opero com este aparelho.
O professor Ciro realizou uma pesquisa com alunos que vivem no exterior sobre a influência dos dispositivos para esses. Resposta: são importantes no momento em que se chega ao outro país. Para eles: isso facilita até certo ponto, mas é necessário deixar de lado e entrar em contato com o “estrangeiro”. O outro fisicamente presente é imprescindível. É uma constatação a posteriori: minha vida é pobre só com esses aparelhos. Há um vazio. Há uma carência do estar junto sem intervenção contínua desses aparelhos.
Trata-se de se abrir para o diferente. Viver cada momento. Relacionar-se com o outro. Parecem antigas tais evidências, mas hoje reaparecem como necessidade vital, como carência que não está consciente nas pessoas. Vivencia-se essa angústia na sociedade de massa. Não sabemos onde está o mal… que pode estar aí. A sociedade de massa provoca uma ruptura. “É preciso se esvaziar de si mesmo; só assim posso receber o outro dentro de mim” (Levinas). No momento em que me esvazio de mim e acolho o outro, posso me abrir para ele, viver intensamente, relacionar-me com ele. Sentir o outro, ouvir o outro. É isso efetivamente que é comunicação. Para viver temos que nos abrir à comunicação.
No momento aberto às perguntas, muitos temas foram brevemente tratados pelo professor Ciro.
O facebook e demais redes, não obstante as pertinentes colocações do assessor, têm desempenhado um papel decisivo na comunicação. Jornalismo não é tão neutro e inocente, mas um procedimento em que as pessoas lutam para fazer prevalecer opiniões (o capital da notícia – livro do Ciro). A informação é decisiva na sociedade. De que forma passar a notícia? Os meios de comunicação são dos mesmos donos do poder, que não vão se interessar por temas populares. As redes apareceram como contrainformação. O jornalista está desperto para um outro mundo, em que a pauta não é feita dentro da redação. A pauta é influenciada pelo twitter; a televisão muda o que as pessoas estão assistindo, por causa do posto na rede. O jornalismo está se dobrando a isso e perdendo o monopólio que tinha antes. Isso é construído por participação popular – uma mudança interessante do ponto de vista da informação. As pessoas estão percebendo que está cada vez mais difícil se comunicar pelos meios já “clássicos” e grandes, contaminados por certa ideologia. O jornalista perdeu a dimensão do que é fazer jornalismo. A imprensa perdeu um pouco a capacidade de desdobrar uma notícia e virou meio pouco confiável. Cabe ao jornalista rever isso e considerar que o jornalismo é conflito.
Mas o conflito comunicação presencial x digital não é uma questão de valoração entre o melhor e o pior; são diferentes. A primeira tem seus problemas também. Entraves psicológicos. Demora muito tempo até encontrar espaço comum de aberturas e interesses. O mais importante da comunicação não tem a ver com texto e fala, mas como a coisa que é comunicada: os fatores de entonação, etc. A comunicação presencial precisa ser conquistada. E não é impositiva, mas se dá por estratégia de envolvimento: levar o outro a te ouvir. O que às vezes entra em conflito com resistências interiores: descaracterização, racionalização. Até o momento do “estalo”, a quebra da resistência. O outro sai do seu modo de pensar e entra em outro, o que demanda empenho e tempo. No virtual não tem como jogar com essa insistência. Não há intimidade. Mas conta-se com outros recursos. O cinema não é presencial: se está diante de uma projeção, em uma situação fechada, no escuro. Mas pode-se sair transformado daí – o filme transforma. Não é presencial, mas tem força. O mesmo com o livro. Provocar a mudança é o mais importante. Isso pode ser presencial ou à distância.
Mas, como falar a língua de cada pessoa, ao transmitir uma notícia ou uma programação; atingir o maior número de pessoas, quando cada um tem sua linguagem? É claro, entretanto, que existe uma certa “língua universal”. O que cabe aí, é trabalhar com temas que pertencem a todos e não estão localizados necessariamente no tempo e espaço – independente de grupos. Abandonar a particularização e sectarismos, divisões internas. Trabalhar ideias, princípios, bases, e não aplicações momentâneas disso. No momento em que me descolo de um problema particular, entro em uma linguagem que atinge a todos, criando um meio de atração, que não é para a minha posição particular (o que interessa é criar um campo comum e não criar barreira). Produz-se algo interessante e que não para em fronteiras. Partilhar uma noção geral. Nesse sentido, um dos temas mais difíceis e importantes da comunicação é a questão da alteridade. Hoje nos deparamos com o paradigma do fechamento (uma tendência constante que impede tudo: diálogo, etc. – a tecnologia parece estar levando a maior fechamento: um paradoxo. Criar barreiras é aumentar abismos sociais). Conhecer o outro-que-não-sou-eu se desdobra na tolerância, solidariedade, questões que nos acompanham hoje. As pessoas estão se afastando: viraram espectros, imagens.
Seria esse o desafio de “comunicar num mundo de muitos sinais e informações e quase nenhuma comunicação” – pergunta o Fr. Gustavo Medella, parafraseando o teólogo J. B. Libânio (“crer num mundo de muitas crenças e pouca libertação”)? Para o Ciro, Libertação é um termo interessante. Libertar-se de vícios, preconceitos. Fazer outra vez o pensamento voltar a ter vida. Muitas pessoas estão mortas por dentro. A cabeça já não trabalha mais, está tomando cada vez mais lugar a repetição das coisas. Nós podemos recuperar a vida em vida. Fazer com que o pensamento volte a ser criativo. O desafio é continuar vivo!
Outro problema que se associou à comunicação: os padrões de consumo mudam por moda. Isso não é comunicação. É uma mudança conjuntural. As pessoas buscarem as coisas só por que passam na TV é absurdo. Comunicação é transformação; ela tem que ser mais que símbolos e consumo. A comunicação transcende os símbolos, mas vai para o caminho das ideias e princípios. A civilização está se desenraizando de valores e concepções de mundo. Pessoas que agem de forma difusa e sem conexão. Falta é trabalhar princípios que causem aderência. É preciso vivenciar as coisas com as pessoas. É necessário conhecer o contexto. É uma questão de conquista, feita através de mecanismos que não são autoritários; é questão de levar o outro a quebrar suas próprias resistências e se sensibilizar. Isso se consegue na arte. Mas também na reportagem. Esta tem a capacidade de ficcionalizar, de envolver – não é o envolvimento da publicidade. É um envolvimento mais ambicioso. Pra isso é preciso respeitar o “receptor”, conhecendo seus limites e história de vida. A partir dele, produzir o discurso. Sentir o outro, para aí trabalhar a relação com o outro. Aí se consegue abrir-se para o outro. O que não garante que o outro vai fazer o que você quer, mas que ele vai se transformar em alguma medida.
Por: Fr. Rafael Teixeira do Nascimento OFM
(Publicado em Instituto Teológico Franciscano)
Fonte: Aleteia